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30 de maio de 2014

Liberdade Assistida

   Era uma vez... Não, não era uma vez. Estou farta da obrigação de um final feliz que há nas histórias que começam assim e que impregnam em nossa cabeça quando crianças, marcando-nos até os fins dos dias. Tenho sérios problemas em distinguir o que é final. Não me interessa também a palavra ''feliz'', pois esta - e outras muitas - buscam inutilmente nomear essas coisas que apertam o peito e que nos instigam a sabermos até onde nossa alma vai. Então, não, não era uma vez.
   Todos os dias vou comprar pão na padaria do Seu Fábio. Até que ele é simpático e vende um pão macio. E sempre, sempre mesmo, vejo um homem que me olha fixamente e tem um andar cambaleante. Acredito que ele fica no bar a noite toda e, pela manhã, perambula pela rua.
    Certo dia - especial, pois chego ao ponto de querer relatá-lo - quando o olhei, senti um calafrio no corpo e ao mesmo tempo uma sensação de não estar no real e deparei-me como telespectadora de mim. Desta forma... Sem vírgula. Sem espaço para pensar no que poderia estar acontecendo. Sem tempo para confirmar minha sensações. Sem vão para respirar.
   Logo voltei ao aparente normal, aquele aceitável. Continuei a andar e logo cheguei à padaria.   Cumprimentei o padeiro e comprei os pães.
   Ao chegar em casa, senti novamente aquela estranheza...
   Houve outras vezes e a cada passagem por este desconhecido mundo, ficava mais aflita.
   Criei diversas hipóteses para descobrir o que e porquê estava sentindo esse aperto que é seguido por uma película, que se passa dentro de mim, cuja protagonista principal sou eu e, simultaneamente, observadora do meu filme.
   Após alguns dias, tomei consciência que é inútil frustar-se por isso, já que meu mundo não está em minhas mãos. Depois de muitas teses, resolvi seguir uma das primeiras que pensei: sentar e me assistir.

28 de maio de 2014

Tentativa de escrever um poema

Venho tentando escrever um poema
Daqueles que deitamos com o rosto úmido
No gélido chão
Venho tentando escrever um poema
Sem rima, sem estrofe
Em vão...
Venho tentando escrever um poema
Que liberte as caladas vozes
Que lhes dê um pouco de som...
Venho tentando escrever um poema
Simples, sem cor nem ilustração
Apenas um poema
Mas, mas...
Minha alma é composta por poesia
Por rimas, por estrofes
Sem chão

Retrato

Lembro-me bem que logo após virar aquela esquina suja, vi-o dançando no meio da rua. Seguia um ritmo caloroso e a melodia que o embalava era a surda canção do vento.
Deu-me a impressão que tinha um bambolê imaginário no corpo e que não podia deixá-lo cair e, por isso, sacudia-se tanto. O meu já caíra há tempos...
Um grupo bobo de adolescentes passou por ele e não faltaram olhares medíocres, insinuando que o bailarino - sim, bailarino - era ridículo.
Ridículo sou eu, homem de 30 anos, com um trabalho desprezível e um bambolê quebrado.
Continuei a olhá-lo e principalmente admirá-lo. Sanidade é inútil.

1 de maio de 2014

Na Hora de Dormir

  Na hora de dormir, seu nome dominava meus pensamentos e seu rosto tornara-se meu. Sua voz era a melodia que me fazia rodopiar no lugar mais lindo de mim - tão seu.
  Na hora de dormir, alcancei o travesseiro e imaginei-o ali, navegando pelas minhas águas, descobrindo meus espaços, respirando o meu ar - tão seu. Fantasiei-o consumindo-me e eu, dissipando-o em pedaços seus - tão meus.
  Na hora de dormir, encontrei com suas fitas e delas com as minhas, fiz um laço - mais forte que um nó - para nunca mais soltar.
  Na hora de dormir, olhei para o meu teto estrelado e vi rapidamente uma estrela cadente. Pedi-lhe o dono do sorriso mais sincero. Pedi-lhe você e toda sua galáxia - sendo você meu Sol.
  Na hora de dormir, tornei-me sua - já nem tão minha.

Uma Tal de Indecisão

- E como você vai me matar?
- Ora, menina! Não pensei nisto ainda.
- Não? Por quê?
- Deixe os porquês de lado, já disse. Bom, posso começar a pensar...
- Vai, fale as suas vontades.
- Seria legal te matar na casa de Dona Teresa...
- Adoro o bolo de fubá que ela faz.
- Eu também! O cheiro é ótimo!
- Por falar em cheiro ótimo, já usou o perfume que te dei no dia dos namorados?
- Não...
- Você não gostou, né?
- Pare de falar bobagem! Claro que gostei.
- Hum...
- Posso te matar devagar, né?
- Acho que sim.
- Seria interessante te enforcar...
- Não gosto de enforcamentos, desculpe.
- Afogamentos você curte?
- Adoro! São definitivamente trágicos. Mas sei lá...
- Posso te bater até vocês desmaiar.
- Que absurdo! Jamais!
- Você não sabe o que quer.
- Sei sim. Quero que você me mate, mas sem exageros. 
- Tá.
- Me dê um tiro.
- Não tenho arma, amorzinho.
- Assim fica difícil!
- Venha cá, beba este suco...