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11 de agosto de 2013

Aquela Estranhice

  Crescera num bairro humilde de uma simples cidade. Seu sorriso era tão pobre quanto seu olhar inocente. Comia apenas o necessário. Necessário para a morte. 
  Vestia-se do modo que dava.Se importava com seu estômago dolorido e mais: com seu pensamento frustado. Era pequenina, mas já entendia sobre si mesma e reconhecia sua inutilidade perante os demais seres presentes aqui nesse mundo tão...
  Não se condenava por ser dispensável. Ela era assim. E aceitava-se desse modo. Até seus pais abandonaram-a. Sem motivos. O fato de seu sorriso ser vazio já bastava.
  Certo dia, então, essa guriazinha resolveu matar o coelho que morava em frente ao que ela chamava de 'lar'. Matou-o sem dó. Sentiu-se bem. Noutro dia, matou um bodezinho. E assim foi... Até o dia em que matou a si mesma. Ah, nunca sentiu-se tão viva!

Inesgotavelmente

- Shiu! Fala baixinho. Eu sei que a sua voz é linda, mas não podemos acordar quem já está dormindo. Está tarde, sabia? E esse seu timbre na voz encanta-me tanto. Estou com sono. Deite aqui pertinho… Pronto. Agora, dá para falar no pé no meu ouvido. Essa melodia que você pronuncia quando abre a boca está deixando-me com sono. Mas não quero dormir. Quero apreciar o seu sorriso um pouco mais. Que…sorri…sso.. lin…

Ela não conseguiu terminar a frase. Matei-a logo em seguida, como faço com todas as outras. Encontro-as na rua, encanto o coraçãozinho delas e depois, retiro-os, literalmente. Elas dizem que devemos procurar a felicidade e acreditam que eu seja fonte inesgotável do prazer delas. Bom, elas também são para mim.

10 de agosto de 2013

Âmago Perpétuo

  Ajo como um tolo sempre. Meu Deus! O barulho do tiro ecoa em meus ouvidos, atormentando-me. Após ouvir o som da morte, fico sem reação. Não me conformo com o ato que cometi. Meus pensamentos vêm e vão e não consigo organizá-los.

  Observo em volta, procurando no vazio algo que me complete. Viro minha cabeça para a esquerda e vejo uma jarra com água. Água parada. Daquelas que aparentam estar sujas – assim como minhas memórias. O vidro que a mantém está velho – igual a mim. A jarra está sob uma pequena mesa de madeira. 
  Olho para o outro lado e vejo uma cadeira como as que me sento no bar. Ao seu lado, encontra-se um armário. Não alto, porém largo. Prefiro não abri-lo.
  Fixo novamente meu olhar no vazio e reflito: não há lugar melhor que do este para cometer tal infração. O cômodo – aparentemente uma sala – é arcaico e exala o cheiro da morte. Há mais confusão nessas paredes que nas obras de Miró.
  Estou perdendo tempo. Preciso concentrar-me no que está em minha frente. Esta carcaça... Sem vida.
  Algo que não entendo: a morte. É difícil dizer se alguém está morto ou não. Há algumas pessoas, que mesmo mortas, permanecem com uma certa luz. Outras, entretanto, mesmo com seus corações batendo, estão sem vida. O que define a morte? A falta do ar? A parada do cérebro? Para doutores, perguntas como estas seriam afirmações. 
  Mas e eu? Um homem com mais de meio século, sem experiências positivas... O que seria a morte?
  Uma noite, estava andando na orla enquanto a lua cheia estava iluminando a areia e guiando o caminho daqueles que precisam de estradas para sobreviverem; deparei-me com uma figura transcendente. Ela tinha olhos reluzentes e boca avermelhada. Vestia panos coloridos amarrados na cintura sob uma saia comprida e azul. Em seus braços, pulseiras douradas. Ah, claro! Era uma cigana!
  Percebi que seu olhar estava fitando-me. Seus olhos entraram pela minha garganta e penetraram diretamente em meus pulmões.
  As marcas e ferimentos causados por longos anos como fumante vieram à tona. Aquele olhar trouxe a dor do arrependimento dos abusos da adolescência.
    Ela abriu a boca vagarosamente:
- Você está morto.
  Não a respondi.
  Virou-se, então,  para o outro lado e afastou-se. Não a consegui conter. A coragem que sempre tive abandonara-me. Apenas observei-a ir embora, perdendo-se no horizonte.
    Necessito voltar ao problema criado por mim há minutos atrás. O questionamento do porquê realizei aquele ato está gritando. Creio que para tentar encontrar a resposta, preciso analisar o cadáver.
  Ando um metro, quase. Na verdade, flutuo sob o abismo. Perco a noção de tempo e espaço quando estou sozinho. Pensando melhor, sou sozinho. Quem não é? A solidão é tão forte que se torna alguém. Alguém que eu não quero. Droga! Estou desconcentrando-me novamente.
     Estou mais próximo do cadáver. Se eu der mais um passo, fico perto dele. Tão perto que...
  Começo a analisar as pernas. Oh! Ele está em pé! Não é possível! Como consegue permanecer assim?
  Seus pés são grandes. Ele usa sapatos de couro preto. Sua calça é jeans. Escuro. Ele está limpo. Não há sangue. Incrível. Acima da calça, há um cinto com uma fivela opaca. Tão opaca quanto sua pele. Não é normal.
  Suas mãos estão livres. Não tem anel em seus dedos. Nem dedos há, eu acho.
  Sua camisa é preta. Sem detalhes. Não há sangue também.
  Meu Deus! Não pode ser... Seu rosto!
  Um espelho!
  Eu? Será?
  Talvez seja mesmo. Morri? Aliás, acredito que não especifiquei o que é gatilho. Não foi arma, acho. Foi palavra, foi vento. Foi dor – ou amor.