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20 de novembro de 2013

Jogo da Velha

  Era uma sala apertada, com cheiro de fuligem. Coisa antiga. Entrei ali e logo inundou-me o pânico. Não havia muita coisa, apenas uma mesa de sinuca. E ao seu lado, uma cadeira. Tudo muito vago - mas não tanto quanto eu.
  Não sabia onde deveria fixar meus olhos. Sobre a mesa havia duas bolinhas: uma verde e outra, amarela. Esperança e medo. Fiquei paralisado. Notei uma mancha vermelha no chão.
  Desconheci o significado daquilo, confesso. Mil acasos e confusões passaram pela minha cabeça. Seria um copo de vinho que teria caído brevemente?
  Muito normal, não. Ultimamente não tenho colocado fé - se é que uso a palavra correta - nas coisas muito fáceis. Se a dificuldade não está presente, a felicidade também não.
  Sangue, talvez? A resposta ''sim'' seria plausível. Mas quem derramara o sangue? Quem o fizera derramar?
  De repente, percebi que não estava sozinho. Outra alma - ou melhor: corpo - havia entrado na sala mal-vivida.
  Era uma velha. Seu cabelo branco estava amarrado com um laço verde e seus olhos demonstravam falta de interesse em si mesma. Era enigmática...
  Ela não hesitou abrir a boca, mas fez questão de exalar seu olhar por todo o cômodo macabro.
  Perguntei a ela:
  - Senhora, o que significa essa mancha vermelha no chão?
  A única coisa que ouvi vindos dela foram ruídos ininteligíveis.
  Os olhos dela encontraram os meus e aí, respirei o ar da indiferença - que ela mesma criara.
  Devia ser meio surda, meio desatinada, meio perdida, meio sei lá! Era o x da minha questão.
  Abaixei-me, ficando, assim, ao nível das ondas da minha imaginação. Coloquei a cabeça rente ao chão, encostado meu rosto na mancha. O cheiro tirou todas as minhas dúvidas. Após senti-lo, levantei meu corpo bruscamente. A velha - meio surda, meio desatinada, meio perdida, meio sei lá - havia sumido. Evaporou. E bem nesse instante que notei a sua ausência, percebi que outro detalhe também havia desaparecido.
  Sim, a mancha sumira. Fiquei assustado, não nego. Deixei a sala com um passo paranóico. Corri até a rua, peguei a chave no bolso e entrei rapidamente no fusca azul.
  Olhei, então, para o banco do passageiro ao meu lado e vi, sob o pano de couro, uma mancha. Mancha vermelha. O medo chegou e ficou falando ao pé no meu ouvido palavras que me transformavam em um fantasma. Meus olhos, logo, encontraram o vidro do retrovisor e vi o rosto da velha - meio surda, meio desatinada, meio perdida, meio sei lá.

Modus Operandi

  - Gosta de bolo de fubá, muleque?
  - Não sei...
  A incerteza pertinente que havia dentro de João José, com seus cabelos encaracolados e olhos apalermados, causava aflição a todos.
  - Ora! Não sabe se gosta?
  - Ãn?
  - Esqueça!
  Foi assim desde cedo. Morava com os avós, pois seus pais abandonaram-no enquanto ele ainda estava no útero.
  Os pensamentos de João José haviam desvanecido ao longo do tempo. Pensara demais até sua fase adulta. Após seus quarenta anos, já com marcas precoces da velhice, desencantou de suas reflexões, quaisquer que eram. Em sua juventude, quisera definir o que era o presente. Encontrou no dicionário um significado que não o contentou. Matutou, então, que o presente não passava de um passado duvidoso e de um futuro inconstante. Ele, sem tardança, assumiu que a vida lha mostrara o quão vagas são as definições.
  João José procurava, frequentemente, sinais querendo saber onde estava. Bobagem! Logo soube - e deveria agradecer aos Céus por isso - que tampouco importa as características de um local, pois eles não ditam onde verdadeiramente estamos. Esses aspectos estão em nós.
  João José não ouvia. O Universo era demais para ele.
  João José não gostaria de ler este texto. Acreditaria que a repetição de seu nome só mostraria que ele é vazio. João José gosta do novo, mesmo não sabendo aproveitá-lo. Há estrias na alma de João José.
  João José, em certo dia de suas loucuras, penso que sua existência poderia ser resumida com duas palavras: amor e ódio. Mas, veio-lhe outra pergunta: se a existência é definida por amor e ódio, a morte é definida pelo quê?
  Não se martirizou por criar essa questão que o estilhaçava. Porém, nunca mais, segundo ele, criaria nenhuma pergunta. Respeitou essa decisão até dois dias após sufocar-se com sua própria morte, pois foi então que desvendou o mistério: amor é morte, ódio é vida.

19 de setembro de 2013

Espelho D'Alma

  ''Mudei, meu amor. Eu era tão diferente antes de conhecer-te... Era outra. O teto do mundo tinha a cor do mar. Agora, tem o mesmo pigmento do estigma que percorre pelo meu corpo. Olhar, sorriso e voz não são os mesmos. São mais livres. Minhas celhas estão pretas como a cor do meu cabelo. Foi você que as deixou assim, colosso. Diferentes... Até minha corcova mudou. Está mais profunda. Você inebriou-me. Nunca pensei que ficaria assim.''
  - É isto que escuto todos os dias, Doutor. Após ceifá-la, tornei-me como ela.
  - Extasiado?
  - Não, morto.

18 de setembro de 2013

Ferozmente

  Acordei. Não era cedo. E nem tarde. Olhei para o relógio e o ponteiro batia quatro horas da manhã. O estranho é que deveria estar escuro... Sempre que abro os olhos, uma luz fortíssima acende. Estava com sede. Resolvi levantar para pegar um copo com água.
  Coloquei os pés no chão. Chão frio. Dei dois passos e avistei a janela da cozinha. Já lhe contei sobre o pavor que tenho de janelas? Aliás, tenho pavor de tudo que é vazio e que propicia a entrada do vento. Quando a brisa bate em mim, desmorono. Fico aos pedaços e ficar quebrada não é o melhor jeito para se estar.
  Voltando para a janela: fiquei com medo. O vidro estava fechado e dava para ver nitidamente as folhas das árvores balançando. Por mais que me incomodasse, continuei a fitar aquele pequeno abismo.
  Um dia, uma amiga disse que esse meu medo de janelas é inútil. Mal sabe ela que são nas pequenas imensidões que nos perdemos de nós mesmos...
  Além do medo de abismos, tenho medo de monstros. Bichos feios que moram lá. Ou aqui?
  Poderia aparecer um monstro, não poderia? Um fantasma, sei lá! Esperava pelo susto.
  Andei por toda cozinha. Mas não deixei de olhar para a janela. Estava imersa nos meus medos. Não encontrava jeitos para voltar à realidade.
  Levantei os braços e alcancei o armário que guarda os copos. Peguei um de vidro. Prossegui com a ação. Logo cheguei perto da torneira. Abri-a e vi a água cair. Tão poético... Coloquei o copo embaixo e logo, enchi-o.
  Minutos passaram-se e continuei fitando aquele espaço vazio. Nada apareceu, para meu alívio e espanto. Sem monstros.
  Voltei para a cama, olhando para trás e todo instante e...
  Nada!
 Deitei-me novamente e fiquei matutando. Passaram mil ideias em minha cabeça. É, talvez, os bichos macabros morem dentro de mim.
 

Míssil

  Sentou-se na mesa de jantar. Ajeitou a gravata e pôs o guardanapo sobre as pernas. Tratou, ainda, de fitar a si mesmo para ver se estava apresentável.
  Os demais olharam-no infinitamente, duvidando do que estavam vendo. Homem charmoso, com um sorriso misantropo. Mesmo não sendo um poço de simpatia, todas as pessoas do vilarejo queriam-no presente. Nada tinha ele. Nada ele tinha.
  Dono do casarão, Antônio, não se cansava de olhar para tal ser. Convidara-o para entender o que há de tão mágico nele, pois outros já comentaram sobre o quão impetuoso o moço era. Pois estava ali, frente a frente, à espera de algo inusitado.
  O ar culto continuou. A esposa de Antônio olhava também para o alvo, se é que posso chamá-lo assim.
  Era uma mulher com longos cabelos negros e dona de um timbre melódico, o qual pertencia inteiramente a seu amado.
  Com a mão direita para trás e a esquerda rente a respectiva perna, entrou pela estreita porta, então, um garçom com elegância descomum. Vestira um terno preto e uma gravata borboleta azul. Seus olhos transmitiam ganância. Atravessou a sala escura e a cada passo, andava com uma fineza infalável. Infalável, pois nada - absolutamente nada - é inescrevível.
  Enquanto isso, o silêncio servia-se das três pessoas que se encontravam na mesa. Mas seus olhos diziam...
  Logo, o garçom encostou na parte de trás da cadeira onde estava o convidado.
  Caiu no chão suditamente. O sangue impuro esparramou por todo lado e penetrou no olhar de Antônio:
  - Obrigado. Agora, pode sair.
  O proprietário, que tanto queria ser surpreendido, organizou a si mesmo um espetáculo.
  Ele e sua mulher levantaram-se e foram para o quarto. Lá, morreram de amores.

5 de setembro de 2013

Ela Flor

  Era um dia frio. Quase congelado. Ao andar pela rua com a mochila vermelha pesada, a garotinha estava molhada. Afinal, chovia. Ela tinha rumo sim, mas na verdade, não queria ter. Queria mesmo era andar por aí, em qualquer canto, procurando numa esquina algo que a fizesse bem. Nada a fez.
  Ao dar um passo sobre uma calçada meio de concreto, meio de vento, ela caiu. Caiu com o rosto no chão. E lá se foram todos os seus pedacinhos na enxurrada... Ergueu levemente seus olhos e viu cada parte sua indo embora, para nunca mais voltar.
  Após ficar ali, levantou-se. Olhou para os lados e suspirou por saber que não havia ninguém na rua. O vazio é melhor. Abaixou a cabeça, para procurar o motivo de sua queda. Um iceberg. Mas não na calçada. Em si mesma.
  Continuou a andar, enfim, pelas ruas sujas. O contraste de sua pele branca com suas lágrimas pretas era visivelmente lindo. Por dentro, nem tanto. Seus olhos estavam derramando e escorrendo...
  O caminho não tinha fim. Ela também não. Era tão limitada quanto o céu.. Tão...
  O Sol apareceu brevemente. Ela resolveu parar, erguer a cabeça e encará-lo com todas as suas forças. A estrela, muito frágil, não aguentou vê-la por muito tempo e logo sumiu.
  A menininha - que devia ter uns 14 anos - prosseguiu. A cada passo, uma dor. Sempre pensando que a dor anda... E passa.
   Ela não queria admitir para si mesma, mas no fundo, reconhecia que precisaria de tempo, tempo para si. Todos sabiam que ela era apressada, meio impulsiva. Não pensava... Mas sentia. Ouso dizer que ninguém sentia tanto quanto ela.
  Foi andando e caçando a si mesma. Logo chegou em casa. Sentou-se na mesa do computador e até agora, ninguém sabe onde ela está.

11 de agosto de 2013

Aquela Estranhice

  Crescera num bairro humilde de uma simples cidade. Seu sorriso era tão pobre quanto seu olhar inocente. Comia apenas o necessário. Necessário para a morte. 
  Vestia-se do modo que dava.Se importava com seu estômago dolorido e mais: com seu pensamento frustado. Era pequenina, mas já entendia sobre si mesma e reconhecia sua inutilidade perante os demais seres presentes aqui nesse mundo tão...
  Não se condenava por ser dispensável. Ela era assim. E aceitava-se desse modo. Até seus pais abandonaram-a. Sem motivos. O fato de seu sorriso ser vazio já bastava.
  Certo dia, então, essa guriazinha resolveu matar o coelho que morava em frente ao que ela chamava de 'lar'. Matou-o sem dó. Sentiu-se bem. Noutro dia, matou um bodezinho. E assim foi... Até o dia em que matou a si mesma. Ah, nunca sentiu-se tão viva!

Inesgotavelmente

- Shiu! Fala baixinho. Eu sei que a sua voz é linda, mas não podemos acordar quem já está dormindo. Está tarde, sabia? E esse seu timbre na voz encanta-me tanto. Estou com sono. Deite aqui pertinho… Pronto. Agora, dá para falar no pé no meu ouvido. Essa melodia que você pronuncia quando abre a boca está deixando-me com sono. Mas não quero dormir. Quero apreciar o seu sorriso um pouco mais. Que…sorri…sso.. lin…

Ela não conseguiu terminar a frase. Matei-a logo em seguida, como faço com todas as outras. Encontro-as na rua, encanto o coraçãozinho delas e depois, retiro-os, literalmente. Elas dizem que devemos procurar a felicidade e acreditam que eu seja fonte inesgotável do prazer delas. Bom, elas também são para mim.

10 de agosto de 2013

Âmago Perpétuo

  Ajo como um tolo sempre. Meu Deus! O barulho do tiro ecoa em meus ouvidos, atormentando-me. Após ouvir o som da morte, fico sem reação. Não me conformo com o ato que cometi. Meus pensamentos vêm e vão e não consigo organizá-los.

  Observo em volta, procurando no vazio algo que me complete. Viro minha cabeça para a esquerda e vejo uma jarra com água. Água parada. Daquelas que aparentam estar sujas – assim como minhas memórias. O vidro que a mantém está velho – igual a mim. A jarra está sob uma pequena mesa de madeira. 
  Olho para o outro lado e vejo uma cadeira como as que me sento no bar. Ao seu lado, encontra-se um armário. Não alto, porém largo. Prefiro não abri-lo.
  Fixo novamente meu olhar no vazio e reflito: não há lugar melhor que do este para cometer tal infração. O cômodo – aparentemente uma sala – é arcaico e exala o cheiro da morte. Há mais confusão nessas paredes que nas obras de Miró.
  Estou perdendo tempo. Preciso concentrar-me no que está em minha frente. Esta carcaça... Sem vida.
  Algo que não entendo: a morte. É difícil dizer se alguém está morto ou não. Há algumas pessoas, que mesmo mortas, permanecem com uma certa luz. Outras, entretanto, mesmo com seus corações batendo, estão sem vida. O que define a morte? A falta do ar? A parada do cérebro? Para doutores, perguntas como estas seriam afirmações. 
  Mas e eu? Um homem com mais de meio século, sem experiências positivas... O que seria a morte?
  Uma noite, estava andando na orla enquanto a lua cheia estava iluminando a areia e guiando o caminho daqueles que precisam de estradas para sobreviverem; deparei-me com uma figura transcendente. Ela tinha olhos reluzentes e boca avermelhada. Vestia panos coloridos amarrados na cintura sob uma saia comprida e azul. Em seus braços, pulseiras douradas. Ah, claro! Era uma cigana!
  Percebi que seu olhar estava fitando-me. Seus olhos entraram pela minha garganta e penetraram diretamente em meus pulmões.
  As marcas e ferimentos causados por longos anos como fumante vieram à tona. Aquele olhar trouxe a dor do arrependimento dos abusos da adolescência.
    Ela abriu a boca vagarosamente:
- Você está morto.
  Não a respondi.
  Virou-se, então,  para o outro lado e afastou-se. Não a consegui conter. A coragem que sempre tive abandonara-me. Apenas observei-a ir embora, perdendo-se no horizonte.
    Necessito voltar ao problema criado por mim há minutos atrás. O questionamento do porquê realizei aquele ato está gritando. Creio que para tentar encontrar a resposta, preciso analisar o cadáver.
  Ando um metro, quase. Na verdade, flutuo sob o abismo. Perco a noção de tempo e espaço quando estou sozinho. Pensando melhor, sou sozinho. Quem não é? A solidão é tão forte que se torna alguém. Alguém que eu não quero. Droga! Estou desconcentrando-me novamente.
     Estou mais próximo do cadáver. Se eu der mais um passo, fico perto dele. Tão perto que...
  Começo a analisar as pernas. Oh! Ele está em pé! Não é possível! Como consegue permanecer assim?
  Seus pés são grandes. Ele usa sapatos de couro preto. Sua calça é jeans. Escuro. Ele está limpo. Não há sangue. Incrível. Acima da calça, há um cinto com uma fivela opaca. Tão opaca quanto sua pele. Não é normal.
  Suas mãos estão livres. Não tem anel em seus dedos. Nem dedos há, eu acho.
  Sua camisa é preta. Sem detalhes. Não há sangue também.
  Meu Deus! Não pode ser... Seu rosto!
  Um espelho!
  Eu? Será?
  Talvez seja mesmo. Morri? Aliás, acredito que não especifiquei o que é gatilho. Não foi arma, acho. Foi palavra, foi vento. Foi dor – ou amor.