Marcadores

29 de abril de 2014

Partes Inversas

   - Adoro chocolate! - foi seu último pensamento antes de vê-la sair pela porta. E realmente adorava chocolate. Alguns dias, preferia o amargo e outros, o crocante. Depois da saída dela, só conseguiu misturá-lo ao leite.
Sabia que ela iria sair, mas não quando. Sabemos mais do que pensamos - costumava dizer. Durante um tempo, tentou adiar o que se prevê. Adiamos, sem querer, o que não sabemos que irá acontecer.
   Não pensar é o remédio.
   Questionou a si mesma:
   - Saímos quando não estamos contentes? Ou quando estamos felizes demais? 
   Ela não podia abandonar-lhe, mas o fizera. Cruelmente. Deixara-a pela metade da metade... Quando ainda estamos no útero, somos inteiros. Mas quando o mal-dito médico tira-nos dali, ele nos corta ao meio. O mundo não aceita complexidades.
   A parte mais pura é amassada e jogada no lixo. Ela apodrece, mas nunca deixa de ser nós. Deus a guarde! A outra metade é dada aos pais, para criá-la e educá-la. Deus a salve!
   Quando ela abriu a porta vertiginosamente, Guernica ficou pela metade da metade. Fez-se outro Universo em questão de segundos. Um Universo onde a Dúvida era a mãe. 
   Passou-lhe pela cabeça que tudo ali não existia. Nada existe. O que vemos foi, um dia, imaginado por um certo alguém, que de tão sólida que sua mente era, transformou-se em matéria. No momento que tocamos num objeto qualquer, estamos tocando no inapálpavel. Estamos tocando em nossa metade que gostaria de ser inteira.
   Já que nada ali havia, por que sua dor era tão intensa? - perguntara-se. Mas não deixou barato, não! Correu atrás dela pelas escadas abaixo, gritou e quando viu-a longe e quase invisível aos olhos nus, jogou-se no chão, esperneando, berrando. Após minutos, sentiu-se como uma tola. Criança... Não, criança não! Tinha quinze anos. Era moça. Ah, não! Era criança!
   Levantou-se e viu o mundo inteiro a sua volta, rindo, do seu descontrole. Ajeitou-se e deu meia volta. 
   Passou na frente de dois ventiladores que não tinha reparado que estavam ali quando passara correndo agoniadamente. Sabia que a maioria de suas colegas diriam ''bom dia'' para os ventiladores, pois o calor era insuportável naquela cidade infernal, naquele edifício infernal. Mas ela não. O vento deixava seu véu desarrumado... Gostava do que não se mexe. Já bastam meus sentimentos aflorados - disse uma vez para um chocolate amargo. E o chocolate nada respondeu. Por isso, gostava-o ainda mais!
   Andou rapidamente, afim de distanciar-se dos ventiladores.
   Voltou a sua casa. Sexto andar, apartamento 610. O espaço estava do jeito que deixara. Tudo imóvel... O melhor.
   Sentou-se no sofá e olhou a porta pelo qual ela saíra. Os fins são tristes.
   Decidiu não mais chorar e nem remoer a aparente solidão. Devia entender que um fragmento seu não a queria mais.Com muitas pessoas é assim...
   Quando um lado parte, ficamos sozinhos, já que um pedaço de bolo não mata a fome. Nosso subconsciente não aceita o abandono e logo procura por algo que o complete.
   - Olá, angústia...