Marcadores

19 de setembro de 2013

Espelho D'Alma

  ''Mudei, meu amor. Eu era tão diferente antes de conhecer-te... Era outra. O teto do mundo tinha a cor do mar. Agora, tem o mesmo pigmento do estigma que percorre pelo meu corpo. Olhar, sorriso e voz não são os mesmos. São mais livres. Minhas celhas estão pretas como a cor do meu cabelo. Foi você que as deixou assim, colosso. Diferentes... Até minha corcova mudou. Está mais profunda. Você inebriou-me. Nunca pensei que ficaria assim.''
  - É isto que escuto todos os dias, Doutor. Após ceifá-la, tornei-me como ela.
  - Extasiado?
  - Não, morto.

18 de setembro de 2013

Ferozmente

  Acordei. Não era cedo. E nem tarde. Olhei para o relógio e o ponteiro batia quatro horas da manhã. O estranho é que deveria estar escuro... Sempre que abro os olhos, uma luz fortíssima acende. Estava com sede. Resolvi levantar para pegar um copo com água.
  Coloquei os pés no chão. Chão frio. Dei dois passos e avistei a janela da cozinha. Já lhe contei sobre o pavor que tenho de janelas? Aliás, tenho pavor de tudo que é vazio e que propicia a entrada do vento. Quando a brisa bate em mim, desmorono. Fico aos pedaços e ficar quebrada não é o melhor jeito para se estar.
  Voltando para a janela: fiquei com medo. O vidro estava fechado e dava para ver nitidamente as folhas das árvores balançando. Por mais que me incomodasse, continuei a fitar aquele pequeno abismo.
  Um dia, uma amiga disse que esse meu medo de janelas é inútil. Mal sabe ela que são nas pequenas imensidões que nos perdemos de nós mesmos...
  Além do medo de abismos, tenho medo de monstros. Bichos feios que moram lá. Ou aqui?
  Poderia aparecer um monstro, não poderia? Um fantasma, sei lá! Esperava pelo susto.
  Andei por toda cozinha. Mas não deixei de olhar para a janela. Estava imersa nos meus medos. Não encontrava jeitos para voltar à realidade.
  Levantei os braços e alcancei o armário que guarda os copos. Peguei um de vidro. Prossegui com a ação. Logo cheguei perto da torneira. Abri-a e vi a água cair. Tão poético... Coloquei o copo embaixo e logo, enchi-o.
  Minutos passaram-se e continuei fitando aquele espaço vazio. Nada apareceu, para meu alívio e espanto. Sem monstros.
  Voltei para a cama, olhando para trás e todo instante e...
  Nada!
 Deitei-me novamente e fiquei matutando. Passaram mil ideias em minha cabeça. É, talvez, os bichos macabros morem dentro de mim.
 

Míssil

  Sentou-se na mesa de jantar. Ajeitou a gravata e pôs o guardanapo sobre as pernas. Tratou, ainda, de fitar a si mesmo para ver se estava apresentável.
  Os demais olharam-no infinitamente, duvidando do que estavam vendo. Homem charmoso, com um sorriso misantropo. Mesmo não sendo um poço de simpatia, todas as pessoas do vilarejo queriam-no presente. Nada tinha ele. Nada ele tinha.
  Dono do casarão, Antônio, não se cansava de olhar para tal ser. Convidara-o para entender o que há de tão mágico nele, pois outros já comentaram sobre o quão impetuoso o moço era. Pois estava ali, frente a frente, à espera de algo inusitado.
  O ar culto continuou. A esposa de Antônio olhava também para o alvo, se é que posso chamá-lo assim.
  Era uma mulher com longos cabelos negros e dona de um timbre melódico, o qual pertencia inteiramente a seu amado.
  Com a mão direita para trás e a esquerda rente a respectiva perna, entrou pela estreita porta, então, um garçom com elegância descomum. Vestira um terno preto e uma gravata borboleta azul. Seus olhos transmitiam ganância. Atravessou a sala escura e a cada passo, andava com uma fineza infalável. Infalável, pois nada - absolutamente nada - é inescrevível.
  Enquanto isso, o silêncio servia-se das três pessoas que se encontravam na mesa. Mas seus olhos diziam...
  Logo, o garçom encostou na parte de trás da cadeira onde estava o convidado.
  Caiu no chão suditamente. O sangue impuro esparramou por todo lado e penetrou no olhar de Antônio:
  - Obrigado. Agora, pode sair.
  O proprietário, que tanto queria ser surpreendido, organizou a si mesmo um espetáculo.
  Ele e sua mulher levantaram-se e foram para o quarto. Lá, morreram de amores.

5 de setembro de 2013

Ela Flor

  Era um dia frio. Quase congelado. Ao andar pela rua com a mochila vermelha pesada, a garotinha estava molhada. Afinal, chovia. Ela tinha rumo sim, mas na verdade, não queria ter. Queria mesmo era andar por aí, em qualquer canto, procurando numa esquina algo que a fizesse bem. Nada a fez.
  Ao dar um passo sobre uma calçada meio de concreto, meio de vento, ela caiu. Caiu com o rosto no chão. E lá se foram todos os seus pedacinhos na enxurrada... Ergueu levemente seus olhos e viu cada parte sua indo embora, para nunca mais voltar.
  Após ficar ali, levantou-se. Olhou para os lados e suspirou por saber que não havia ninguém na rua. O vazio é melhor. Abaixou a cabeça, para procurar o motivo de sua queda. Um iceberg. Mas não na calçada. Em si mesma.
  Continuou a andar, enfim, pelas ruas sujas. O contraste de sua pele branca com suas lágrimas pretas era visivelmente lindo. Por dentro, nem tanto. Seus olhos estavam derramando e escorrendo...
  O caminho não tinha fim. Ela também não. Era tão limitada quanto o céu.. Tão...
  O Sol apareceu brevemente. Ela resolveu parar, erguer a cabeça e encará-lo com todas as suas forças. A estrela, muito frágil, não aguentou vê-la por muito tempo e logo sumiu.
  A menininha - que devia ter uns 14 anos - prosseguiu. A cada passo, uma dor. Sempre pensando que a dor anda... E passa.
   Ela não queria admitir para si mesma, mas no fundo, reconhecia que precisaria de tempo, tempo para si. Todos sabiam que ela era apressada, meio impulsiva. Não pensava... Mas sentia. Ouso dizer que ninguém sentia tanto quanto ela.
  Foi andando e caçando a si mesma. Logo chegou em casa. Sentou-se na mesa do computador e até agora, ninguém sabe onde ela está.